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sábado, 6 de março de 1976

Saga - Homo Sapiens [1976]


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6º DIA

já o lado das trevas se apartava
já o orgulho das ondas se estancava
já a última pedra se firmava
ainda o lume nos astros não morria
ainda o rumo dos ventos se traçava
e a pergunta no lodo se movia
já a carne se casava com as ervas
e girava fria pelas águas claras
e no ar em voo raso se enfeitava

ainda o lume nos astros não morria
ainda o rumo dos ventos se traçava
e a pergunta no lodo se movia
quando nas primeiras horas da manhã
alguém erguia a cabeça em algas presa
alguém estendia a mão, tocava a terra

ainda a prata da terra se escondia
ainda a treva entrelaçava o meio-dia

José Luís Tinoco
(baseado num poema de Pedro Tamen)



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FILIUS DOMINI, FILIUS HOMINIS


Descubro a voz
que em trevas se acendia.
Acordo o fogo
que nas pedras dormia
e nele tempero o ferro
das lanças e dos clarins.
Descubro as nascentes dos rios
e corto os mares até ao fim.
Fecundo desertos
levanto muralhas
suspendo jardins.
Aponto as minhas torres aos céus
interrogo as estrelas.
Invento a justiça
reparto-me em deuses.
A pedra em ouro converto.

Uma ave poisa sob a ogiva
da minha janela e diz-me:
Ainda não voas ...

José Luís Tinoco



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HIROXIMA


6 de Agosto de 1945
8 e um quarto da manhã.
Já premiste o botão
que fez descer 100 milhões de graus centígrados-morte
e erguer da terra um belo clarão
enorme e deslumbrante.
Missão cumprida.
Espera-te um país reconhecido
e mais tarde
os pés no vazio
quando souberes que
em poucos segundos, sob as tuas asas,
desde as ruas e jardins do centro
até os campos em redor,
homens, mulheres, crianças e animais
foram varridos por um vento
que pulverizou tudo o que encontrou no seu caminho,
que alguns sobreviveram gritando queimados de morte
entre cinzas e cascalho,
que os arrozais perderam a verdura
e a erva ardeu como palha seca.
Número total de mortos: cerca de 70 000.
Um belo clarão ...
enorme, sábio, deslumbrante.
A teu lado alguém pergunta:
Meu Deus, que fizémos?...

José Luís Tinoco



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CANTIGA DE IMIGO


Comigo me desavim,
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Não posso fugir de mim.

Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo.
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Onde me posso já ir.
Quem me será bom amigo?
Mal em estar, mal em fugir,
Dentro cá trago comigo
Quem me a mim há destruir

Olho e nenhum cabo vejo
Onde me possa salvar,
Contra mim mesmo pelejo.

Sá de Miranda
Bernardim Ribeiro



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INVASÃO


À porta está um Anjo Mecânico
com a espada da devastação.

É um Anjo Frio
que não baixou do céu
deitado num relâmpago
com asas de apoteose.

Nem desceu da lua
agarrado aos cabelos
da deusa do Sol Oculto.

O Homem desta vez
não ergueu os braços
para o fabricar nas estrelas.

Fê-lo aqui na terra
com o lodo das minas
onde só há astros no suor do carvão.

Forjou-o com os ossos
deste mundo metálico
onde se combate por todo o universo.

Criou-o à nossa imagem
com músculos frios
e sangue de petróleo.

Vejam!

É um Anjo de Aço
gelado pelo fogo de milhões de almas
está ali de pé, implacável, à espera.
Com o fumo das fábricas nos olhos
e um motor no coração
a pulsar pelos homens

Vejam!

Está ali de pé, imóvel, à espera,
num frio de complicação de milhares de roldanas ...
Vejam!
(...Mas nos seus cabelos de arame farpado
prenderam-se estrelas.)

José Gomes Ferreira



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GUERRA


Dizes que entre os animais
proíbe guerras o instinto
e que vês com horror o homem tinto
no sangue dos seus iguais.
Sábios homens não compares
com os brutos animais,
pois se uns com os outros cabem
e juntos a um pasto vêm,
é só porque inda não sabem
a virtude que o ouro tem.

Dizes que uma guerra acesa
é teatro de impiedade;
e que em colégios se ensina
em uma aula, a arte da guerra,
em outra, a da medicina.
Zombar dos homens procuras
e das suas vãs ciências,
sempre cheios de loucuras
e cheios de incoerências.

Dizes que entre os animais
proíbe guerras o instinto
e que vês com horror o homem tinto
no sangue dos seus iguais.
Sábios homens não compares
com os brutos animais.
Trazem focinho no chão
e nós sempre ao alto olhamos;
temos em dote a razão;
e por isso levantamos
uns contra os outros a mão.

Nicolau Tolentino



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CARTA


Senhor da Terra
Sacra majestade
cinzenta pomba vitoriosa
Senhor da troca, da venda, da batota
da pluma, do ouro, da seda
Senhor da sabedoria
deus da mercadoria
feirante de almas
corretor do demo às ocultas de Deus
Senhor da banca, do suor,
da guerra santa, do ordenador
Senhor do impossível, da astronave, do polivinil
do fogo das forjas
do aço, do frio
da treva povoada de serpentes
Senhor, é a ti que escrevo.
De Cartago, do Peloponeso, de Jerusalém
de Sadova, de Lepanto
das trincheiras de Verdun
das areias de El-Alamein
das falésias da Normandia
do fogo no mato
do frio das estepes
do fundo do mar.
Escrevo a dizer-te
que por ti
fui gloriosamente morto.

José Luís Tinoco



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NO 20º ANIVERSÁRIO DA MORTE DO POETA


Vêde,
grande sábio era o rei dos hebreus;
para ele tudo era claro
e acabou por maldizer o dia em que nasceu.
Vêde,
grande sábio aquele que não temeu
no negrume poisar o olhar
dizendo aos céus e à terra:
O astro-rei que pare!
As ousadias pagam-se.
Acabou sozinho, despido de honrarias
e os homens lhe gritaram:
Ah, blasfemo, de joelhos!
Como ousas desdizer
o que em nome de Deus foi dito?
Ah, blasfemo, como ousas afirmar
que a criação de Deus gira às avessas nos céus?

E eu
sou maldito
porque sou poeta
e ousei fazer perguntas
e muitas ficaram na boca dos homens:
Onde vivem os obreiros dos palácios?
Que mãos constroem as cidades?
Quem faz as vitórias dos generais?
Quem chora quando uma armada se afunda?

Eu não maldisse o dia em que vi claro,
fui blasfemo mas não me puseram de joelhos;
não deixei, fugi para o mar
para poder fazer perguntas em voz alta:
Onde moram os assassinos?
Quem conta a história dos vencidos?
Quem faz andar os engenhos?
Quem prepara os grandes festins?
E quem paga a despesa?

José Luís Tinoco



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APRENDIZ DE FEITICEIRO


Fez cidades, ficou preso.
Fez navios, naufragou.
Fez um Banco e ficou teso.
Fez um filho que o matou.

Fez o grande mecanismo
dentro do qual se entalou.
Fez da sina um sinapismo.
Fez o Estado e abafou.

Fez a agudeza do aço
do gume em que se cortou.
Fez o grande, ficou escasso.
Fez a fonte que o secou.

Fez a casa da altura
de poder suicidar-se.
Fez da cara uma moldura
de enquadrar o seu disfarce.

Fez a ciência erudita
do não saber de menino.
Aperfeiçoou a escrita
de palavras de assassino.

Deitou a morte nos rios,
de si mesmo fez-se fera,
e entre os calores e os frios
vai lavrando a sua espera.

Pedro Tamen



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DUNAS


Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre: 
«O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa. Transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem».

Carlos de Oliveira

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